quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A LEITURA, OU A ATUALIZAÇÃO DO TEXTO



           Desde suas origens mesopotâmicas, o texto é um objeto virtual, abstrato, independente de um suporte específico. Essa entidade virtual atualiza-se em múltiplas versões, traduções, edições, exemplares e cópias. Ao interpretar, ao dar sentido ao texto aqui e agora, o leitor leva adiante essa cascata de atualizações. Falo especificamente de atualização no que diz respeito à leitura, e não da realização, que seria uma seleção entre possibilidades preestabelecidas. Face à configuração de estímulos, de coerções e de tensões que o texto propõe, a leitura resolve de maneira inventiva e sempre singular o problema do sentido. A inteligência do leitor levanta por cima das páginas vazias uma paisagem semântica móvel e acidentada. Analisemos em detalhe esse trabalho de atualização.
Lemos ou escutamos um texto. O que ocorre? Em primeiro lugar, o texto é esburacado, riscado, semeado de brancos. São as palavras, os membros de frases que não captamos (no sentido perceptivo mas também intelectual do termo). São os fragmentos de texto que não compreendemos, que não conseguimos juntar, que não reunimos aos outros, que negligenciamos. De modo que, paradoxalmente, ler, escutar, é começar a negligenciar, a desler ou desligar o texto.
Ao mesmo tempo que o rasgamos pela leitura ou pela escuta, amarrotamos o texto. Dobramo-lo sobre si mesmo. Relacionamos uma à outra as passagens que se correspondem. Os membros esparsos, expostos, dispersos na superfície das páginas ou na linearidade do discurso, costuramo-los juntos: ler um texto é reencontrar os gestos têxteis que lhe deram seu nome.
As passagens do texto mantêm entre si virtualmente uma correspondência, quase que uma atividade epistolar, que atualizamos de um jeito ou de outro, seguindo ou não as instruções do autor. Carteiros do texto, viajamos de uma margem à outra do espaço do sentido valendo-nos de um sistema de endereçamento e de indicações que o autor, o editor, o tipógrafo balisaram. Mas podemos desobedecer às instruções, tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas, estabelecer redes secretas, clandestinas, fazer emergir outras geografias semânticas.
Tal é o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade ou de uma platitude inicial, esse ato de rasgar, de amarrotar, de torcer, de recosturar o texto para abrir um meio vivo no qual possa se desdobrar o sentido. O espaço do sentido não preexiste à leitura. É ao percorrê-lo, ao cartografá-lo que o fabricamos, que o atualizamos.
Mas enquanto o dobramos sobre si mesmo, produzindo assim sua relação consigo próprio, sua vida autônoma, sua aura semântica, relacionamos também o texto a outros textos, a outros discursos, a imagens, a afetos, a toda a imensa reserva flutuante de desejos e de signos que nos constitui. Aqui, não é mais a unidade do texto que está em jogo, mas a construção de si, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem do mundo, a culminação de nossos projetos, o despertar de nossos prazeres, o fio de nossos sonhos. Desta vez o texto não é mais amarrotado, dobrado feito uma bola sobre si mesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma.
Do texto, propriamente, em breve nada mais resta. No melhor dos casos, teremos, graças a ele, dado um retoque em nossos modelos do mundo. Talvez tenha servido apenas para pôr em ressonância algumas imagens, algumas palavras que já possuíamos. Eventualmente, teremos relacionado um de seus fragmentos, investido de uma intensidade especial, com determinada zona de nossa arquitetura mnemônica, um outro com determinado trecho de nossas redes intelectuais. Ele nos terá servido de interface com nós mesmos. Só muito raramente nossa leitura, nossa escuta, terá por efeito reorganizar dramaticamente, como por uma espécie de efeito de limiar brutal, o novelo enredado de representações e de emoções que nos constitui.
Escutar, olhar, ler equivale finalmente a construir-se. Na abertura ao esforço de significação que vem do outro, trabalhando, esburacando, amarrotando, recortando o texto, incorporando-o em nós, destruindo-o, contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita. O texto serve aqui de vetor, de suporte ou de pretexto à atualização de nosso próprio espaço mental.
Confiamos às vezes alguns fragmentos do texto aos povos de signos que nomadizam dentro de nós. Essas insígnias, essas relíquias, esses fetiches ou esses oráculos nada têm a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto, mas contribuem para criar, recriar e reatualizar o mundo de significações que somos.
LEVY, Pierre. O que é o virtual? Disponível em http://joelteixeira.net/resources/downloads/m.estudo/misc/O_que__o_Virtual_Pierre_Levy.pdf. Acesso em 26/10/2010

O começo

A vocês, alunos de Gestão de Turismo do IFS,
Iniciamos agora nosso trabalho virtual. Espero que consigamos belos frutos.